O ano de 2015 dá seus primeiros passos. Para muitos, paira no ar a sensação de
incertezas: o cenário político e econômico brasileiro se mostra instável; de certo modo,
isso causa perplexidade, considerando-se que um amplo processo eleitoral há pouco se
encerrou e atendeu o desejo da maioria da população votante – portanto seria plausível
esperar que estivéssemos num momento mais leve e de otimismo. O cenário mundial
também não se diferencia do que ora vivemos aqui: efeitos da crise econômica ainda se
estendem pela Europa, as mudanças climáticas se agravam em todos os continentes,
guerras e fundamentalismos se tornam mais exacerbados e virulentos na aurora do ano
que mal se inicia... Momentos confusos exigem discernimento e lucidez; pausa e
inspiração. Onde buscá-las?
Os funcionários, professores, dirigentes dos colégios, obras sociais e religiosas da
SIC, mantenedora da rede educacional Santo Agostinho, estiveram reunidos, nessa
primeira semana de fevereiro, com o educador Cesar Nunes, professor da Unicamp, para
uma reflexão que se mostrou realmente inspiradora e instigante sobre os caminhos da
educação brasileira e as possibilidades de transformação que se apresentam
especificamente nessa área.
Munido de grande erudição e saber, somados a uma comunicação sensível e bem humorada,
César falou para a “inteligência e o coração” dos seus ouvintes.
Lembrando, à luz do pensamento de Jean-Paul Sartre, que o ser humano é “aquilo
que fizeram dele, somado àquilo que ele faz do que fizeram dele”, César Nunes conduziunos
pela história da educação brasileira, com seus condicionamentos históricos, suas
matrizes políticas, filosóficas, debilidades e contradições vindas daí. A educação
brasileira responde, hoje, pelo que fizeram dela no passado. Conhecer seus percalços é
fundamental: permite-nos tomá-la como uma tarefa ainda a ser efetivada, rever
conceitos e atitudes, buscar novos horizontes e inspirações. Há muito o que fazer. Ela
será aquilo que fizermos dela: crer em sua transformação, acolher e sustentar as
mudanças que já ocorrem, suprimir práticas que já não condizem com o tempo presente,
são gestos genuinamente revolucionários, pois permitem vir à luz algo novo, melhor!
César Nunes foi discípulo e companheiro de trabalho de nomes fundamentais para
a educação brasileira, tais como Paulo Freire, Rubem Alves, Demerval Saviani –
verdadeiros faróis a iluminar os caminhos da história recente do pensamento
pedagógico. César descobriu, em sua própria história de vida, as raízes do educador que
ele se tornou, raízes que se fecundaram na leitura, interlocução e convivência com
aqueles homens. Compartilhou com eles que o educar é, por si mesmo, um ato político:
oferece instrumentos para que a pessoa se torne sujeito da sua própria história,
consciente, atuante e decisivo na realidade em que está inserido. Educar constitui-se
como ato de grandeza, tendo como finalidade auxiliar-nos a “tornar-nos pessoas” mais
plenas, iniciando-nos no mundo da cultura, da consciência de si mesmo e da vida em
sociedade, da aquisição de atitudes e valores que norteiam “aquilo que fizeram de nós e aquilo que faremos daquilo que fizeram de nós”! Seria liberdade a palavra que expressa
melhor a finalidade do educar?
Ora, uma educação libertadora distingue entre o fundamental e o que é apenas
circunstancial. Princípios e valores que a sustentam são permanentes: respeito, amor,
comunidade, transcendência... Práticas e resultados, hábitos e métodos estão em
constante mudança, pois se destinam a atualizar a educação para tempos igualmente
em constantes transformações. Vivemos hoje sob o prisma de uma sociedade do
consumo: nela, os saberes se destinam ao lucro, à eficiência e produtividade. Ela
demanda um modelo de educação que prepare pessoas competitivas, adaptadas às
exigências do mercado e que dominem as técnicas e tecnologias em vista de ocuparem
postos nesse mesmo mercado, favorecendo a continuidade do próprio sistema de
consumo. A educação libertadora considera a pessoa em sua inteireza. Portanto, educar
não se restringe a acumular informações, responder avaliações, cumprir tarefas.
Aprender a ser, a conviver, a pensar globalmente, a traduzir o aprendido numa prática
efetiva: são seus pilares irrenunciáveis. Num horizonte mais amplo, mais do que habilitar
tecnicamente as pessoas, preparando-as para determinados afazeres, a educação
libertadora se identifica com o espírito humanista: seu desejo é proporcionar ao homem
ser pleno em suas potencialidades, pois só na plenitude da humanidade conseguiremos
articular sociedades plenamente capazes de acolher as pessoas em suas diversidades.
Uma educação libertadora fala para o intelecto, tanto quanto fala para o afeto, a arte,
o corpo, a convivência com o outro... dimensões da vida que não são alcançadas pelas
avaliações tradicionais e que não compõem o fundamental na cultura tecnicista atual.
De modo emblemático, César Nunes partilhou as memórias dos seus anos iniciais
na escola. Lá, encontrou dois paradigmas educacionais, encarnados nas figuras da dona
Cotinha e do seu Norberto, professores que marcaram sua vida.
Em dona Cotinha, encontrou a educadora amável, capaz de empatia e afeto, que
despertou e fortaleceu a estima própria de um aluno inseguro e estreante no mundo da
escola. Nela, César pôde tomar consciência dos valores que circunscreviam o seu próprio
mundo, advindos da tradição e cultura sertanejos, transformando-os numa verdadeira
plataforma para expandir-se pelos horizontes que a vida iria lhe apresentar.
Já com o professor Norberto, César conheceu uma escola de práticas rígidas,
excludente, pautada pelos resultados e pela eficiência, uma escola que desperta medo e
competição, que interdita a criatividade e enobrece a obediência.
Claro que a realidade não é assim tão bem definida: há, em cada Cotinha, um
pouco do professor Norberto; do mesmo modo, o professor Norberto também tem em si
um pouco da dona Cotinha. Eles são retratos da condição humana que nos une: “Não
consigo entender nem mesmo o que eu faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas
aquilo que mais detesto” (Rm 7, 15). Vivemos sob o signo da contradição. Contudo,
segundo a tradição cristã, “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres.
Portanto, sejam firmes e não se submetam de novo ao jugo da escravidão” (Gal 5, 1). Há
uma linha tênue entre pecado e graça, liberdade e escravidão, a lei e o amor; essa linha
torna-se condição de possibilidade para irmos adiante, “esperar contra toda esperança”,
e encontrarmos em nós mesmos e naqueles que nos antecederam caminhos novos para
a nossa existência.
Deslumbrar essa possibilidade, por meio das palavras de César Nunes,
certamente tocou cada um de seus ouvintes. Tenhamos, pois, coragem e energia vital
para ir além, munidos de tal esperança!