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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Médicos estrangeiros no Brasil

“Logo que, numa inovação, nos mostram alguma coisa de antigo, ficamos sossegados." (F. Nietzsche)
 
            É reação muito comum às pessoas que, diante de algo desconhecido, sobrevenham anseios, temores e a dificuldade de lidar com o novo que se apresenta. E isso se dá não apenas em âmbito individual: grupos sociais e mesmo nações hesitam diante de fenômenos que representem uma ruptura dos seus costumes já enraizados nas mentes e corações da cultura de um povo.
 
            Com a distância dos tempos, alguns episódios são, inclusive, relidos com um tom de humor. Na primeira década do século XX, em 1904, um episódio conhecido como a “revolta da vacina” ilustra bem essa realidade: diante de uma situação de precário saneamento público e vendo o avanço da varíola no Rio de Janeiro, o sanitarista Oswaldo Cruz foi designado para implementar um plano de ações que pudessem combater a doença. Entre elas, o governo do Rio decretou uma vacinação obrigatória na população, que se revoltou e foi às ruas protestar. Em meio a diversos boatos, a população se recusava a ser vacinada, com medo de que aquela vacina pudesse lhe causar outros males piores que a varíola!
 
            Nesses dias, os jornais vêm noticiando um fato que guarda alguns pontos de semelhança com aquela “revolta das vacinas”: o programa Mais Médicos e a vinda de médicos estrangeiros, sobretudo cubanos, para trabalharem no Brasil.
 
         
          Muitas informações têm sido divulgadas, várias com posicionamentos ideológicos contrários ou favoráveis à vinda desses médicos. Irônico, no entanto, é perceber que, no emaranhado de informações diárias, há uma sensação de enorme desinformação a respeito do que significa esse programa e a vinda desses profissionais.
 
            Temos ciência de que o atendimento médico e hospitalar no Brasil, embora caminhe a passos lentos em direção a melhorias, ainda é muito precário: nos grandes centros urbanos, há médicos, estruturas e equipamentos em número insuficiente na rede pública. Os planos particulares de saúde, cada vez mais caros, também são cada vez mais ineficientes, à medida que um maior número de pessoas consegue ter acesso a eles. Nas pequenas cidades do interior, há demandas por estruturas adequadas e principalmente por médicos e profissionais da área de saúde para atender a população.
 
            O Programa Mais Médicos consiste num “pacote” de ações que visa mudar tal situação. Prevê mais verbas para a área de saúde, renovação de estruturas e equipamentos e oferece subsídios para que os médicos brasileiros atuem em áreas que sofrem pela escassez desses profissionais. É um programa que envolve a ação política nas 3 instâncias de governo: municipal, estadual e federal.
 
            Na primeira fase desse programa, o número de médicos que se inscreveram para trabalhar em áreas interioranas foi insuficiente. Daí a iniciativa do governo federal em abrir as vagas remanescentes para médicos estrangeiros.
 
            Essa decisão representa algo de novo para os brasileiros. Indica uma direção nova no modo de lidar com o problema da escassez de profissionais em determinadas regiões do país. Por si só, é insuficiente, mas já é um passo na direção de suprir demandas e déficits que se prolongam por décadas.
 
            Contudo, tal iniciativa governamental causou alvoroço nas categorias que atuam nas áreas de saúde, polemizando em torno da efetividade dessa ação. A mídia deu voz às polêmicas, ampliando-as e trazendo ainda maior confusão e desinformação para o debate.
 
            A chegada dos primeiros médicos estrangeiros foi saudada com um assustador preconceito: médicos brasileiros buscaram todo tipo de argumento para repudiar os “colegas” estrangeiros, associações e cooperativas de médicos vaiaram e insultaram à vontade. Houve uma jornalista que afirmou que “as médicas cubanas tinham aparência de empregadas domésticas”!!!
 
            É claro que as manifestações a respeito não foram apenas de repúdio. No primeiro dia em que esses médicos passaram pelo curso de habilitação para trabalharem no Brasil, outros colegas os receberam com flores em sinal de desagravo, mostrando que podemos, sim, ser um povo educado e acolhedor, que consegue enxergar além das filiações ideológicas e partidárias.
 
            Em meio a toda essa história, dados foram pesquisados, números e cifras foram colocados nos debates e nas planilhas e manchetes de jornais. Faltou, contudo, o mais importante: olhar para o ser humano.
 
            O primeiro ser humano em questão é o próprio médico que chega ao Brasil. Esses médicos, cubanos e de outras nacionalidades, não vêm ao Brasil com a pretensão de enriquecer ou fazer carreira aqui, muito menos ocupar o lugar dos médicos brasileiros. São pessoas e profissionais que trazem consigo um ideal de vida, um propósito e um valor: a solidariedade com o ser humano. E isso não é algo novo e assustador: há médicos no mundo inteiro que trabalham dessa forma e que contribuem com povos que sofrem por demandas ainda mais graves que as brasileiras. Vide o exemplo de organizações tais como os “Médicos sem fronteiras”, Cruz Vermelha e outras.
 
            Embora seja a primeira vez que um governo brasileiro recrute, via acordos internacionais, a vinda de médicos estrangeiros, isso não representa novidade alguma. A Organização Pan-americana de Saúde (a entidade de saúde mais antiga do mundo, fundada em 1902) coordena convênios como esses em 58 países! A própria ONU, por meio da OMS (Organização Mundial de Saúde) afirma que “são corretas as medidas de levar médicos, em curto prazo, para comunidades afastadas e de criar, em médio prazo, novas faculdades de medicina e ampliar a matrícula de estudantes de regiões mais deficientes, assim como o número de residências médicas. Países que têm os mesmos problemas e preocupações do Brasil estão colhendo resultados da implementação dessas medidas”. [1]
 
            O segundo olhar se direciona a outro ser humano: o paciente (criança, idoso, pai, mãe...) que, diante de uma enfermidade, necessita ser atendido, cuidado, acompanhado por um profissional. E há em nosso país, um contingente de milhões de pessoas que ainda não são atendidas dignamente, pois há um descaso histórico com a questão da saúde no Brasil. Para essas pessoas que moram nos centros e nas periferias do Brasil, pouco importa o sotaque ou nacionalidade de quem o atende. Para elas, o importante é a confiança, atitude fundamental na relação médico - paciente, a competência técnica e o conhecimento necessário que possa auxiliá-lo na doença e na fragilidade.
 
            Oxalá, daqui a algumas décadas, possamos olhar para os atuais episódios e relê-los com o mesmo tom de humor a respeito da “revolta das vacinas”, pensando: como éramos tolos no passado! Oxalá tenhamos em nosso país estruturas e médicos dignos e suficientes para as nossas pessoas.
Jean Carlos de Araújo Ferreira
Coordenador do Depas

[1] Comunicado da OMS, intitulado como “Programa Mais Médicos é coerente com recomendações da Organização Pan-Americana da Saúde” acessado em http://jornalggn.com.br/blog/onu-solta-comunicado-atestando-a-coerencia-do-programa-mais-medicos, com acesso disponível em 29 de agosto de 2013.
 

 

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